statement

Conto história desde que me entendo por gente. Minha mãe diz que desde que comecei a falar, eu inventava histórias sobre objetos domésticos, pessoas, a natureza. Eu as contaria a qualquer um – e se não houvesse ouvinte, as contaria em voz alta para mim mesma, para minhas bonecas, para meus animais de estimação. Eu me lembro demais disso, mas não me lembro da sensação de inventá-las. Talvez fazer essas anotações sobre a realidade fosse tão natural quanto brincar, comer e dormir, sem nenhum pensamento racional relacionado a isso. Provavelmente era assim porque fui criada em uma família onde a tradição oral era muito forte, composta por muitas mulheres amorosas (minha mãe, vovó, mais sete tias e uma enxurrada de primas) e homens ausentes e/ou violentos. Minha avó foi uma atriz mambembe no semiárido pernambucano e meu adorável avô, a única figura masculina que teve um impacto positivo na minha formação, era um pequeno agricultor familiar, organizador comunitário e ambientalista.

Havia MUITA conversa em nossa casa. Além de falar da vida alheia (que é a argamassa da vida social), compartilhávamos histórias sobre tradições rurais, natureza humana, lendas urbanas, desastres naturais, morte, amor, milagres, revoluções e outras coisas grandiosas. Esses tópicos eram comuns em nossa mesa (como a comida que se comia, às vezes mais, às vezes menos, por conta da inflação brutal que assolou o Brasil até os anos 90). É preciso também considerar que, crescendo nos anos 80 como eu cresci, durante a ressaca da ditadura empresarial-militar brasileira, a linguagem lá em casa (e em muitas outras casas) era usada de forma quase codificada e essas histórias eram contadas, muitas vezes, de forma altamente metafórica, quase codificada. A ficção tinha que estar em toda parte, mesmo que a história contada fosse baseada em fatos reais, porque a ficção poderia proporcionar alguma segurança – poderia evitar problemas com a polícia militar e os apoiadores do regime.

Adulta, entrei na faculdade de Jornalismo, cujas práticas norteiam meu trabalho em todos os aspectos até hoje, mas a principal influência, quero dizer, a razão pela qual faço as coisas do jeito que faço, vem da minha mãe, que sempre me incentivou a sonhar todos os sonhos; e do meu avô que, apesar da falta de escolaridade (ele mal conseguia escrever), sempre me incentivou a fazer o máximo de perguntas possível – e tentar entender por que as coisas são tão injustas como são. Ele me encorajou a ligar os pontos e tentar trazer uma perspectiva que vai além do mero “é assim que eu vejo o mundo, portanto é assim que o mundo deve ser”. Além disso, o amor de ambos pelas pessoas, o seu respeito pelos idosos e pelos nossos antepassados, o seu interminável interesse e preocupação pelos outros – estas coisas ainda são uma grande influência na minha escrita, na minha fotografia e nas minhas práticas políticas.

Por falta de recursos materiais, não consegui terminar a faculdade de Jornalismo, e só 10 anos depois pude estudar Fotografia, desta vez em Berlim (na Ostkreuzschule, que financiei trabalhando como garçom, babá, modelo vivo e outros empregos precários/alienados). Mas, ainda assim, meu trabalho com poesia documental e fotografia documental existe pela forma como fui criada. Até hoje procuro apreender histórias “reais”, recriá-las e politizá-las, como faziam as mulheres da minha família, há mais de 40 anos.


vovô e vovó em Gravatá do Jaburu, 1990’s


ENG
I have been telling stories since I can remember. My mother says that since I started to speak, I would invent tales about domestic objects, people, nature. I would explain them to anyone – and if there was no listener, I would explain those tales out loud to myself, to my dolls, to my pets. I do remember telling those stories, but I don’t remember the feeling of inventing them. Maybe making those notes on reality were as natural as playing, eating and sleeping, with no rational thinking related to it. It was like that probably because I was raised in family in which oral tradition was very strong, composed of lots of loving women (my mom plus seven aunts) and absent and/or violent men. My grandmother was a former amateur actress and my adorable grandfather, the only male figure who had a positive impact on my upbringing, was a small family farmer, community organizer and environmentalist.

There was a LOT of talking going on, on our household. Besides gossiping (activity that glues social life together!), stories about countryside traditions, human nature, urban legends, natural disasters, death, love, miracles, revolutions and other grandiose things were common on our dinner table, family gatherings etc. One also has to consider that, growing up in 80’s as I did, during the hangover of Brazilian military dictatorship, language was used in a tricky way and those stories were told in highly metaphorical ways. Fiction had to be everywhere, even if the story that was being told was based in real events, because fictionalizing could provide some security – it could avoid trouble with the military police and the supporters of the regime.

I went on to study Journalism, whose practices informs my work in every aspect until today, but the main influence, I mean the reason I do things the way I do, comes from my Mom and my Grandfather who, despite lack of education (he could barely write), always encouraged me to ask as much questions as posible – and go and try to understand why things are as unjust as they are. He encouraged me to connect the dots and try to bring a perspective that goes beyond the mere “this is how I see the world, therefore this is how the world must be”. Besides that, their love of people, their respect for the elderly and our ancestors, their endless interest and worry about others – these things are still a big influence in my writing, my photography and my political practices.

For lack of material resources, I could not finish Journalism school, and only 10 years later could I study Photography, this time in Berlin (at Ostkreuzschule, which I financed working as waiter, babysitter, life model and other precarious/alienated jobs). But, still, my work with documentary poetry and documentary photography exist because of how I was raised. To this day I try to apprehend “real” stories, and recreate them and politicize them, but in a metaphorical manner, the same way the women in my family used to do on the dinner table, almost 40 years ago.